DESEJA-SE MULHER e em tua homenagem continuaremos a lutar!
Há pessoas cuja morte não é só o desaparecimento duríssimo para as mais próximas, o fim do seu trabalho, da possibilidade da sua dádiva, mas também o fim de uma ideia, de uma forma de estar. Fernanda Lapa era uma dessas pessoas. Ainda que este momento pareça um fim, não podemos permitir que, com a sua partida (no passado dia 6 de agosto de 2020), se esqueça a sua forma de ser e o seu legado. Por isso, celebramos neste texto a actriz e encenadora Fernanda Lapa: uma partilha, dentro do que é possível, do impacto que esta teve, tem e terá na nossa vida. Alguém cuja existência foi, de muitas maneiras, exemplar, abrindo caminhos, sobretudo para outras mulheres.
Um pouco de história…
“Contributos para um estudo sócio-psicológico do actor teatral português.” Fernanda Lapa tinha 23 anos e decidiu que essa seria a sua tese de final de curso para assistente social, que a levou ao Sindicato à procura de conhecer a profissão em que já estava mergulhada (ainda enquanto estudante no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, Fernanda Lapa iniciou-se no Teatro dos Alunos Universitários de Lisboa, em1962). Estávamos em 1965. Dois anos antes, em 1963, está na Casa da Comédia, a estrear-se como protagonista da peça “Deseja-se Mulher” escrita por Almada Negreiros e encenada por Fernando Amado. Almada Negreiros delira a vê-la dar corpo e voz à sua imaginação. Dez anos mais tarde, Fernanda voltava ao mesmo texto, mas aí já como encenadora, e duplamente como actriz – regressa a “Deseja-se Mulher” novamente em 1984, no CAM da Gulbenkian, com música de Carlos Zíngaro, coreografia de Elisa Worm, e, diz o jornal A Capital da altura, que era acompanhada por um naipe de jovens promessas do teatro: Alexandre Sousa, São José Lapa, Teresa Roby, Lucinda Loureiro, Françoise Ariel, Jose Jorge Duarte, Madalena Wallenstein, Miguel Abreu e Paulo Oom.
É por essa época que sai um comovente e justo retrato escrito da mulher, actriz e encenadora, a propósito da peça “Crisótemis” de Yannis Ritsos, Encenada por Rogério de Carvalho e que Fernanda interpreta, sozinha em cena, durante hora e meia:
“Assistente social por formação, militante ‘nos dois sentidos’, na política e na vida, Fernanda Lapa é, algumas vezes actriz, e encenadora outras. Cigarro ágil, palavra solta, gesto moderado. O rosto, esse multiplicador de dúvidas, salienta, com alguma frequência, os olhos, brilhantes, os lábios, rubros, a emoção, à flor da pele. Teatro, porquê? Por gosto, na essência. ‘No fundo, foi sempre uma paixão recalcada. Gosto muito de trabalhar com pessoas, gosto muito de sentir o outro,… a duplicidade do actor… por isso resolvi reingressar.’ No fim de contas, só lá vão vinte anos desde o ‘Teatro dos Alunos Universitários de Lisboa’.” (“Fernanda Lapa: Retalhos de uma mulher só”, texto de Luísa Rego, O Jornal, 1983)
Em 1985 está a estrear “A Noite das Tríbades” no Teatro da Trindade (Lisboa), texto de Per Olov Enquist sobre a relação, tumultuosa, de August Strindberg com as mulheres. Fernanda anda às voltas com o texto durante anos, a procurar viabilizar a sua encenação. A rábula das relações com a tutela conta-as ao Sete (que partilhamos), que daria para rir se o estado da Cultura em Portugal neste momento fosse mais digno. Novamente com a questão do feminino.
Pergunta jornalista:
“Há poucas mulheres a encenar. Porquê?”
Responde Fernanda:
“Não há nenhum estudo sobre isso, e é pena, porque também eu gostaria de saber os porquês… Há, de qualquer maneira, algumas questões que podem ser levantadas: porque vão homens e mulheres para o teatro? Há poucas actrizes que não sejam bonitas; será a beleza que conta? É um facto que as actrizes são sempre dirigidas por um homem, mas penso que isto não é uma imposição, está muito na cabeça das mulheres, é quase um hábito…”
Em 1993, Fernanda está mobilizada na realização desse estudo sobre o teatro, que viria a dar os dados concretos que fundamentaram a fundação da Escola de Mulheres (em 1995), juntamente com Isabel Medina, Cucha Carvalheiro, Cristina Carvalhal, Aida Soutullo, Conceição Cabrita e a filha Marta Lapa. Analisaram o número de companhias, escalões dos subsídios, procurando extrair quantas mulheres existiam em cada grupo, que cargos ocupavam, quantas autoras e encenadoras havia. Nesse ano, recorda (em entrevista a Maria Helena Serôdio e Sebastiana Fadda para a revista Sinais de Cena de 2006, intitulada “Modulações e intensidades de um teatro no feminino”) ter havido apenas três encenações de mulheres, e textos escritos no feminino apenas: “um da Hélia Correia, mas que era uma adaptação (Perdição), um de Maria Adelaide Amaral, que é luso/brasileira (De braços abertos) encenado por mim, e outro da Caryl Churchill que eu tinha feito no Teatro Aberto (Top Girls)”.
Um tal levantamento, actualizado, precisa-se. Mantendo vivo o espírito de abertura, resiliência, ousadia, generosidade e integridade. A pergunta de jornalista em 1983 continua a fazer sentido: “Há poucas mulheres a encenar. Porquê?” E já agora na direcção de Teatros? Na programação?…
A Escola de Mulheres está em plena comemoração de 25 anos da sua fundação. Dois meses antes de falecer, numa entrevista ao Expresso, franca nas palavras, Fernanda deu-nos o cru retrato da situação da cultura e das artes em Portugal, agora e sempre, enquanto fazia o balanço desse quarto de século.
Sr. Presidente, Sr. Primeiro Ministro, Sra. Ministra da Cultura:
não vos envergonha o depoimento de uma das mais importantes actrizes e da maior encenadora portuguesa que disse publicamente, aos 77 anos, dois meses antes de morrer, que passou a vida toda a tentar “aguentar o barco”? Será que este depoimento arrebatador, vindo de uma grande mulher do teatro, não é suficiente para perceberem que este é o dia-a-dia da grande maioria das pessoas que trabalham na cultura em Portugal? Ficaram a dever-lhe tudo em verticalidade e condições dignas de trabalho.
O que disse não pode ser ignorado nem esquecido:
“Muitas vezes apeteceu desistir. Nós somos uma companhia com 25 anos – comigo, que tenho cinquenta e não sei quantos anos de encenação – a menos apoiada pela DGArtes/Ministério da Cultura, das que têm apoio quadrianual. Somos só três. Eu não recebo um tostão porque vivo da minha reforma da Universidade de Évora, o meu trabalho de direcção artística é gratuito para A Escola de Mulheres. Tirando o Ruy Malheiro que é o nosso maravilhoso produtor e que ganha muito menos do que aquilo que merecia, a Marta (Lapa) tem pouco mais que o ordenado mínimo. Somos nós os três que aguentamos o barco. Mas quando chega a altura da produção de um espectáculo, o dinheiro foi para a renda, foi para a luz, foi para a água, para os seguros, para os contabilistas. As despesas de manutenção esgotam 2/3 do nosso orçamento. Portanto, os nossos espectáculos [para acontecerem] ou temos co-produções, que temos raramente (a última foi em Janeiro passado no Teatro São Luiz). Íamos ter em Novembro para o aniversário do centenário do Bernardo Santareno que caiu (…)”
Obrigada Escola de Mulheres.
Obrigada Fernanda Lapa.
Obrigada Marta Lapa.
Obrigada Ruy Malheiro.
Não podemos aceitar o diagnóstico de Fernanda Lapa na sua última entrevista ao Expresso (ao podcast “A Beleza das Pequenas Coisas” de Bernardo Mendonça), em maio passado: “Este país não é para artistas, nem para velhos, nem para novos.”
Fernanda Lapa, que abriste caminho para que outras depois de ti viessem.
Deixaste-nos tudo.
E em tua homenagem, continuamos!